Quando falava do impulso, elenquei algo que designei, de maneira
rasa, como “necessidades artísticas”. Mas o que são “necessidades
artísticas”? Bom, vamos voltar lá para trás: não acredito na
necessidade como algo universal. Compreendo mais o termo “desejo”, mas
talvez essa questão linguística se torne, por vezes, também ela,
superficial. Como nos presenteia Hilda Hilst:
Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
[…]
(HILST, 2004, p.20)
De fato, a “veracidade” ou não da palavra “necessidade” em nada
mudará o universo, mas acredito que, nesse caso que estamos tratando, a
expressão “necessidade artística” (desejo, como coloquei antes), vira
Eternidade, com “E” maiúsculo, e, quem sabe, não passa a ser verdade
porque tantos já o disseram? Supondo que aceitemos, eu e você, a ideia
de existir uma tal “necessidade artística de performar fora da caixa”,
gostaria de entendê-la melhor, pelo menos, em mim.
Recorro, antes de tudo, à base teórica que fundei sobre conceitos
urbanísticos (e já já chegará a hora de comentarmos mais sobre essa
escolha). Quando observo as necessidades de revitalização nos
diferentes períodos históricos, encontro que estão intimamente ligadas
às formas com que são realizadas. Vemos isso explicitado por Aline Bezerra e César Chaves , quando indicam que
Segundo Vaz e Silveira (1999, p. 55) a Renovação Urbana se apoia nas ideias do modernismo e a Revitalização Urbana, desencadeado nas últimas décadas em confronto com os excessos do modernismo. O processo de intervenção dos centros urbanos pode ser dividido em três fases, de acordo com Vargas e Castilho (2006, p. 6), essas divisões históricas também definiram o termo, seu uso e significado, algumas ainda usadas até hoje.
(BEZERRA;CHAVES, 2014, p.5)
E, tanto eles, como Dulce Moura, Isabel Guerra, João Seixas e Maria
João Freitas, esmiúçam essas diferentes formas de abordagens de
revitalização segundo as necessidades de cada época e lugar . No
momento não me interessa entrar nesse assunto pois nos desviaria o
pensamento. O que pretendo transmitir é que é possível notar uma
íntima ligação na necessidade com a forma de execução destas
intervenções. Tentarei, então, investigar a forma de realização das
performances para compreender melhor as necessidades artísticas que
estamos perseguindo.
Na verdade, depois de tantas voltas, trago Lilica que, em uma frase,
sintetiza exatamente tudo isso que venho tentando estruturar: quando
questionada sobre como ela lida com o espaço cênico, em geral, se o
adapta para parecer como um equipamento convencional, se utiliza a
arquitetura do espaço para encaixar sua performance ou mesmo se recria
a performance dentro desse novo espaço e ela responde “Depende. [Vai]
de acordo com necessidades artísticas”. Samuca, a sua vez, defende que
o espaço não tem que se adaptar, somos nós quem precisamos nos adaptar
a ele, um conceito muito similar ao de revitalização. E também similar
ao que diz Silvinha, quando afirma que não impõe uma ideia cênica para
o espaço, mas veste sua performance com ele, recria a existência do
espaço, mas não impõe uma ideia pronta para a cena. Dentro do grupo de
performers que escolhi para entrevistar e dentro de mim, há uma mesma
música, que procura o diálogo poético com o espaço, que busca criar
uma cartografia afetiva que enlace espaço e performance.
Neste caminho, Francis Wilker levanta que
Camadas de significação que as características específicas do local ajudam a configurar e que ampliam a leitura da própria obra. Se acima destacamos os aspectos que dizem respeito a esse sentido que o trabalho vai ganhando a partir do espaço, os registros indicam também como os atores foram afetados pela prática: “medo, desespero, coração na boca, risco, adrenalina...”.
(WILKER, 2014, p.282)
Esse contato e afetação com o espaço vai desde limpar o espaço para
que ele fique feliz, como comenta Naná em toda sua doçura, até
realizar modificações na encenação como um todo. Modificações que são
lembradas nos percursos do Entrepartidas, como cita Francis Wilker;
num sapato, elemento cênico que em determinados espaços não pode ser
utilizado pois podem retirá-lo de lugar, como diz Lilica; ou um sapato
que não foi criado com a performance, mas que se faz necessário pelo
chão onde será apresentada, como lembra Silvinha. Dentro de todas
essas modificações, houve uma que foi comum aos cinco entrevistados: a
nudez. Há muito para ser explorado nesse campo e, ele sozinho, poderia
render o estudo de uma vida, mas acho importante, ainda que pincele o
assunto sem nenhuma profundidade neste momento, deixar registrado que
a nudez, em espaços não concebidos para performances, não possui a
mesma liberdade, por exemplo, que em outros eventos cênicos, como o
desfile das escolas de samba ou programas de televisão. E este fator
parece ser um limite à criação (ou à sua reprodução, pelo menos)
quando esta quer ocupar diferentes espaços, sendo tratado, inclusive,
como desobediência civil ou ato obsceno
Desobediência ou ato obsceno visto de um modo, de outro, como
ressalta Eron, é uma adequação ou respeito ao lugar ou à comunidade
presente. De ambos os pontos de vista, a performance acaba submetida a
necessidades da comunidade ou espaço no qual é realizada. Segundo
Aline Bezerra e César Chaves apontam, a partir da citação de Vaz e Silveira, as
intervenções urbanas possuem a característica da “Participação da
comunidade na concepção e implantação.”, pensamento que vemos
repetir-se na fala de
Dulce, Isabel, João e Maria João (MOURA et al., 2006):
é importante que um processo de revitalização envolva a comunidade (por um lado saber com quem é preciso aprender, por outro, saber com quem se quer caminhar), obrigando a planear, desenhar e implementar uma estratégia, a medir os resultados, e provocar uma disseminação e continuidade sistemática dessa intervenção.
(MOURA et al., 2006, p.26)
A comunidade que envolve o espaço e que participa da apresentação é,
indubitavelmente, parte da performance e dessa necessidade artística.
Ela difere da que se encontra dentro do edifício teatral e, mesmo
quando não difere, é preciso observar que a postura que ela toma
dentro de cada espaço difere. Pensamentos que são traduzidos também
por Silvinha, que diz que “o público está mais livre”, e Lilica que
coloca que “o espaço também fala da comunidade que está em volta”; o
que nos leva a refletir que adaptar a performance ao espaço, é por
consequência, em certa medida, adaptá-la à comunidade que está a sua
volta.
Talvez, em resumo, o contorno da performance seja, então e na
realidade, uma amálgama com o contorno do espaço e da comunidade a sua
volta. E isso nos dá pistas do que será o que chamamos de “necessidade
artística”.
[...]
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
(HILST, 2004, p.20)
Salve Hilda!